terça-feira, 18 de agosto de 2009

AÇÃO POLÍTICA NA ESCOLA: Notas etnográficas sobre os sentidos da participação discente

Por Rodrigo Manoel Dias da Silva
Resumo: A análise dos modos de participação política dos estudantes no âmbito da escola pública, sob um olhar sociológico, é o interesse central deste artigo. Ao partir de um relato de investigação em andamento no campo das Ciências Sociais, o autor recolhe algumas cenas etnográficas e, analisando-as pela perspectiva da Sociologia da Experiência, identifica algumas práticas de participação em suas continuidades e descontinuidades. Repara, como conclusão parcial, em uma recorrência de participação enquanto dinâmica social, que se elabora nas interfaces entre a experiência social do ator e a institucionalidade das ações participativas.
Palavras-chave: ação política – participação – experiência social – escola pública
Abstract: The analysis of the modes of political participation of students within the public school, under a sociological look, is the core interest of this article. In a report from the research in progress in the field of Social Sciences, the author collects some scenes ethnographic, and analyzing them by the prospect of Sociology of Experience, identifies some practices to participate in its continuities and discontinuities. See, as partial completion in a recurrence of participation as social dynamics, which produces the interfaces between the social experience of the actor and institutionality of participatory activities.
Key words: political action - participation - social experience - public school
A idéia do sujeito não cresce em estufas muito bem protegidas. É planta selvagem! (TOURAINE, 1999, p.75)
A recente produção acadêmica no campo da Sociologia da Educação referente aos mecanismos de participação escolar e aos modos de gestão da escola pública tem priorizado abordagens centradas na macro-política da educação, tematizando a eleição de diretores (DOURADO, 2001), a administração escolar e a qualidade do ensino (PARO, 2001), a legalidade da gestão democrática dos sistemas (CURY, 2005), a reforma política do papel estatal como gestor em tempos neoliberais (SHIROMA, et al., 2004) ou mesmo, dentre outros, os valores permanentes nas instituições democráticas de ensino (HÖFFE, 2004). Estas elaborações constituíram-se como centrais para o entendimento sociológico das interfaces entre educação e política (pública), postulando um modelo top-down de análise. Desde um outro registro, penso que seja necessário empreender olhares que complementem o modelo acima, ou seja, dirigindo lentes investigativas para além daquelas proposições centradas em decisores de políticas sociais, tecendo perspectivas sob um modelo bottom-up (SOUZA, 2003).
A importância destes modelos de análise cresceu a partir dos anos de 1980, atenuada pelos estudos de Michael Lipsky, os quais, segundo Celina Souza (2003, p.17), deveriam orientar-se por três premissas, quais sejam: (a) análise da política pública a partir da ação dos implementadores destas iniciativas, (b) análises concentradas na natureza dos problemas que a política visa resolver e (c) a descrição e a análise das redes de implementação. O modelo bottom-up de análise estabelece por objetivo realizar reflexões no espaço das mediações entre a política pública (educacional, inclusive), seus atores nas esferas de decisão e dos atores nas esferas cotidianas de interação e implementação destes fazeres. Esta ênfase metodológica incorpora a complexidade dos processos políticos e permite conhecer “quién mueve los hilos de las políticas sociales” (PASTORINI, 2000), sendo, pois, um campo fecundo para investigações sociológicas sobre as políticas sociais, em geral, e as políticas educacionais, em particular. Neste sentido, o presente artigo constitui-se em um relato dos resultados de uma pesquisa em andamento no campo das Ciências Sociais. Em tal investigação que venho realizando proponho-me, pois, a entender as mudanças ocorridas, teoricamente, nos processos de ação que configuram a escola na contemporaneidade (TOURAINE, 2006), situando-a entre, por um lado, a constatação da perda do potencial explicativo das perspectivas funcionalintegradoras do ensino-aprendizagem (DUBET, 1994) e, por outro, a afirmação do campo das interações sociais no qual as experiências configuram outros entendimentos das relações sociais. Ou seja, empiricamente, investigo as lógicas que fundamentam a ação política dos/das estudantes nos canais de participação instituídos na escola pública estadual: líderes de turma, grêmios estudantis e conselhos escolares, analisando-as pelo viés das interações entre os/as participantes.
Ao questionar se os canais funcionais de definição da participação na escola se romperam e os modos como atuam estas relações de poder (controles, hierarquias, aparentes ou difusos na participação) na cultura da escola, problematizo o alcance e a efetividade destes processos decisórios manifestos em canais de participação no âmbito da escola. Assim sendo, opto por não estabelecer categorias a priori da prática social, mas evidenciar a construção destas relações na ação destes atores sociais; mais especificamente, assumo certa influência simmeliana2, a qual me faz compreender que as sociabilidades instituem-se e conformam-se nas interações sociais e não, ao contrário de outras perspectivas, que tentam identificar as influências da instituição sobre o ator, como se o mesmo fosse passivo aos condicionantes.Ao pensar, desde Simmel, entendo que as relações sociais são intencionais, pois
[...] todas as formas de interação ou de sociação entre os homens – o desejo de sobrepujar, de trocar, a formação de partidos, o desejo de arrancar alguma coisa do outro, os azares de encontros e separações acidentais, a mutação entre inimizade e cooperação, o domínio por meio de artifícios e a revanche – na seriedade do real, tudo isso está imbuído de conteúdos intencionais (SIMMEL, 1983, p.174).
Com isto, interpreto a necessidade de abordar o tema da participação discente sob um prisma que privilegia as iniciativas dos próprios atores sociais, baseado nas intenções, nas lógicas e nos interesses que mobilizam os sujeitos a participar nos canais de participação, ocasionando em leituras da participação centrada na experiência social dos estudantes (DUBET, 1994), de tal sorte que se vêem restrições aos usos universais das categorias autonomia, democracia ou participação – o que me parece comum em um específico grupo de pesquisas substancialmente fundamentados nas heranças iluministas, como, por exemplo, os estudos de Höffe (2004) ou Afonso (2003). Isto não representa uma negação ou subtração valorativa destes princípios, mas o reconhecimento localizado de seus sentidos e de suas ações.
Do ponto de vista empírico, realizo um estudo etnográfico em duas escolas públicas de ensino fundamental no Estado do Rio Grande do Sul, em municípios distintos, onde operam por um caráter democrático o conselho escolar, o grêmio estudantil e os líderes de turma a fim de realizar uma análise situacional (VAN VELSEN, 1987) destas instituições de ensino. A análise situacional tem me permitido apresentar e lidar com informações etnográficas, assim como me auxilia a perceber e analisar as opiniões e as interpretações dos atores sociais nas situações que vivenciam cotidianamente, porque se admito os tensionamentos que vigoram na ação política na escola, reconheço que o olhar deve voltar-se a estes sujeitos. Dizendo de outra maneira,
Para comprender lo que fabrica la escuela, no basta estudiar los programas, los roles y los métodos de trabajo, es necesario también captar la manera con que los alumnos construyen su experiencia, “fabrican” relaciones, estrategias, significaciones através de las cuales se constituyen en ellos mismos. Hay que ponerse en el punto de vista de las funciones de sistema. La experiencia social no es objeto positivo que se observa y mide fuera como una práctica, como un sistema de actitudes y de opiniones, porque es un trabajo del actor que define unasituación, elabora jerarquías de sección, construye imágenes de sí mismo (DUBET; MARTUCCELLI, 1996, p. 15).
É bem verdade que observar o espaço em que atuo profissionalmente, apesar de observar outras escolas em outros municípios que não aquela em que trabalho, constitui-se um desafio como pesquisador, pois, assim como observava Gilberto Velho (1978), observar o familiar e produzir estranhamentos neste campo simbólico, nem sempre conduz a conhecê-lo. Então, após relatar parcialmente a
investigação que realizo, irei expor umas tantas movimentações analíticas em torno de alguns indicadores que o trabalho de campo e a revisão de literatura têm me mostrado.
Para este artigo, apresento uma análise de duas situações anotadas da investida etnográfica na escola pública que potencializa entendimentos provisórios sobre a ação política naqueles territórios, não se tratando, portanto, de todos os dados, mas a sinalização de aspectos mais acentuados neste momento sendo que, posteriormente, os mesmos podem ser contestados ou até negados. Neste sentido, organizo o presente artigo em três seções. Na primeira, apresento uma sucinta localização da escola em um contexto cultural de permanentes mudanças na sociedade e no sujeito baseado, sobretudo, nos atuais diagnósticos sociológicos produzidos por Alain Touraine. Na segunda seção, exporei, neste contexto de mudanças socioculturais, as contribuições de François Dubet para entender a participação discente desde uma Sociologia da Experiência. Por fim, na terceira parte, apresentarei duas cenas etnográficas desencadeadoras de reflexões e análises parciais sobre a ação política na escola, as quais enunciam minha principal preocupação neste texto.
1. A escola, o ator social e as mudanças culturais
Do ponto de vista investigativo, alguns pesquisadores há tempos já chamavam atenção à escola e a sua gestão em uma necessária complementaridade para a interpretação das políticas educacionais, sobretudo reconhecendo que a escola é um espaço constituído por grupos em permanentes mutações e conflitos por status e legitimidade (CÂNDIDO, 1971), que a autonomia da escola exige a autonomia dos seus agentes (PAZETO; WITTMANN, 2001) ou que a sala de aula não é só lugar do conteúdo, é também locus de disputa pelo saber, de construção das subjetividades e lugar de educação política (BASTOS, 2002). Apesar de importantes estudos concluídos ou em andamento na Sociologia da Educação, a escola (e suas políticas) continua sendo uma questão mal resolvida tanto em sua dimensão de estudo acadêmico, quanto no campo de sua efetividade política e pedagógica. Considerando as especificidades da escola enquanto instituição, aponto a seguir alguns elementos que atualizam o estatuto da escola nestes períodos de mudança sociocultural e subjetiva.
É necessário, inicialmente, admitir que a escola seja uma instituição produto-produtora de uma outra época histórica, nascendo associada a outras circunstâncias sociais, políticas e culturais plenamente identificadas com a Modernidade. Assim sendo, plenamente identificada com os princípios da razão, do progresso e da emancipação, erigindo-se como instância reguladora e socializadora de seus sujeitos em uma ordem social linear e homogeneizadora. O estatuto de valores iluministas postulou chaves de análise para princípios ainda vigentes, para a sociedade e para a escola, como cidadania, democracia, igualdade e participação, sobretudo tendo o Estado Nacional como instância reguladora. Tal perspectiva traz para a discussão, segundo Touraine (1999, p.321), os três atos civilizatórios fundamentais: o controle das paixões pela razão individual, o monopólio da violência legítima exercido pelo Estado e o domínio da natureza pelo conhecimento científico.
Ao enunciar anteriormente o problema investigativo que origina este artigo, anuncio como uma primeira constatação a perda do potencial explicativo dos canais funcionais de integração e socialização dos atores sociais. Significa acrescentar que a Sociologia Clássica, em Durkheim, sobretudo, compreendia o ator como um sujeito a ser socializado plenamente para que fosse reconhecido como um ser social capaz de desempenhar seus papéis, entretanto, contemporaneamente tem-se colocado sob suspeita tais proposições. Alguns elementos desestabilizadores das teses modernas da escolarização como integração do sujeito, foram elaboradas por perspectivas que recuperaram a vertente do interacionismo simbólico. Frente a esta movimentação teórica, poderia referir-me à possibilidade de um ator social atuante e construtor de si mesmo nos campos da cultura, entendida aqui como as experiências sociais do sujeito em seus encontros com outros atores (DUBET, 1994). Alain Touraine é quem, pela minha leitura, consegue diagnosticar importantes nuances destas mutações contemporâneas.
O ator social em Alain Touraine (1999) é um indivíduo que não se realiza individualmente, mas nas relações que se desenvolvem com outros indivíduos, é aquele que expressa vontade de agir e ser reconhecido como sujeito, constituindo-se no envolvimento em processos sociais. Tal existência é situada em uma rede de conflitualidades que medeia a relação deste indivíduo com os outros e consigo mesmo, rompendo com alguns princípios racionalistas e inserindo-o na esfera cultural:
O sujeito não é simplesmente uma forma de razão. Ele só existe mobilizando o cálculo e a técnica, mas da mesma forma que a memória e a solidariedade e, sobretudo, batalhando, indignando-se, esperando, inscrevendo a sua liberdade
pessoal em combates sociais e libertações culturais. O sujeito, mais ainda que razão, é liberdade, libertação e negação. (Touraine, 1999, p. 75)
As condições de fragilidade do edifício moderno que puderam abrir brechas a um sujeito que escapou dos limites circunscritos poderia ser nomeado como “destruição da sociedade” ou “fim do social” (TOURAINE, 2006), isto é, faz-se oportuno perceber a perda do potencial explicativo de alguns relatos oriundos do período moderno clássico. É possível vislumbrar o não-cumprimento das promessas de progresso e emancipação feitos pela sociedade de produção e reivindicados nas lutas sociais, tanto no contexto europeu quanto no brasileiro. Nesta linha de reflexão, é necessário perceber o declínio de pensamentos ligados a uma defesa universal da sociedade ou da escola, aqueles capazes de elaborar e impor normas, valores e formas de autoridade definidoras de estatutos fixos e de funções sobrepostas na relação ator – sistema (TOURAINE, 2006, p.91).
Esta decomposição das instituições sociais modernas fez triunfar o indivíduo3, dessocializado, porém capaz de combater a ordem social dominante. Um ator social constituído por conflitos pessoais, étnicos, geracionais, de gênero, os quais, por imagens distintas, ilustram lutas cotidianas e culturais pontuadas por relações de poder. De tal maneira:
O sujeito se forma na vontade de escapar às forças, às regras, aos poderes que nos impedem de sermos nós mesmos, que procuram reduzir-nos ao estado de componente de seu sistema e de seu controle sobre a atividade, as intenções e as
interações de todos. Estas lutas contra o que nos rouba o sentido de nossa existência são sempre lutas desiguais contra um poder, contra uma ordem. Não há sujeito senão rebelde, dividido entre a raiva e a esperança. (Touraine, 2006, p.119)
A referida modificação no entendimento de sujeito é sinalizada pelo enfraquecimento dos estatutos transmitidos, das pertenças familiares, escolares, sociais ou nacionais e, paulatinamente, pela substituição daquelas explicações exógenas às condutas dos atores sociais, por outras muito próximas das relações destes atores consigo mesmos, indicando a transição de um ator social a um ator cultural. Para apresentar algo mais concreto, do ponto de vista da sociologia da escola, em um contexto francês, mas possivelmente transposto parcialmente ao nosso contexto, durante muito tempo entendeu-se a escola como reprodutora das desigualdades sociais ou foi entendida apenas como elemento transmissor de valores de uma sociedade integradora. Porém, pelo menos desde François Dubet, reconhece-se a distinção dos processos escolares em relação aos sociais (DUBET, 2003a). Pois, neste campo elocutivo, é possível reparar que
[...] os resultados escolares ainda dependem mais da natureza das comunicações entre professores e alunos na escola, o que remete diretamente ao ponto de vista dos atores e de suas interações (TOURAINE, 2006, p. 106).
Desta maneira, posso apontar ao dimensionamento da multiplicidade dos campos de relação entre os sujeitos, pois as capacidades de ação dos atores ao construírem a historicidade de suas experiências - entremeada por sensações, sentimentos, vivências, medos, amores – admitem que as relações sociais são relevantes na produção das subjetividades. Há um esforço comum para constituírem-se sujeitos. Tal abertura às relações sociais representou para François Dubet a denúncia de que processos de desigualdades sociais, econômicas, políticas e culturais estariam subjacentes às interações escolares, pois sempre houve um desencontro entre a igualdade de todos na escola e a desigualdade (tipicamente capitalista) nos méritos dos estudantes. O que revela, a princípio, uma dupla evidência: que muitos processos de emancipação / participação se fazem “sob tutela” (DUBET, 2003a, p. 40) e que estas desigualdades provocam reações: consciência infeliz, desprezo, retraimento ou violência. No tópico seguinte, exploro a Sociologia da Experiência de François Dubet como uma composição, um tanto arbitrária, do “campo de possibilidades” (VELHO, 1994) do ator social nestes tempos em que a escola, a sociedade e o próprio ator social ressignificam-se nas mudanças culturais contemporâneas.
2. A contribuição da Sociologia da Experiência
Se, de acordo com a seção anterior, está em movimento uma perda do sistema de referências proporcionadas pela sociedade industrial e de constituição de um sujeito auto-referencial, estas trocas, neste sentido, representam um declínio de uma idéia de sociedade ou mesmo da morte do social (DUBET; MARTUCELLI, 1996). Segundo esta inferência, as instituições estão perdendo em si mesmas a capacidade de definir subjetividades e, no mesmo movimento, estamos assistindo à derrocada de uma sociedade que integrava mediante um processo de supersocialização dos agentes através de várias agências de socialização, dentre estas a família, a escola ou a igreja, em detrimento da efetiva sociedade de indivíduos “subsocializados e anômicos” que dali se originava (TIRAMONTI, 2005). Neste sentido, o indivíduo não está inteiramente socializado, não porque lhe preexistam elementos natos ou irredutíveis, sua ação não se vincula a um programa único, mas porque existe algo de inconcluso e opaco na experiência social do indivíduo. Pois:
Não existe uma socialização total, mas se processa uma espécie de separação entre a subjetividade do indivíduo e a objetividade de seu papel. E essa socialização não é total, não porque o indivíduo escape do social, mas porque sua
experiência se inscreve em registros múltiplos não congruentes (SETTON, 2005, p. 343).
A citação acima traz à reflexão a noção de experiência social elaborada pelo sociólogo francês François Dubet, tal conceito advém, por um lado, do reconhecimento do contexto de mudanças socioculturais nesta sociedade pósindustrial européia e, por outro, da rica experiência empírica e teórica do autor, pois o mesmo chega a afirmar que o conceito de “experiência” se impôs naturalmente.
Mas, o que se pode entender por experiência social? É uma noção que designa as
condutas individuais e coletivas dominadas pela heterogeneidade dos seus princípios constitutivos e pela atividade dos indivíduos que devem construir o sentido das suas práticas no bojo desta heterogeneidade (DUBET, 1994). Desta maneira, a experiência social apresenta três características importantes para seu uso e entendimento:
a) Heterogeneidade dos princípios culturais e sociais que organizam as condutas;
b) Relativa distância subjetiva que os indivíduos mantém do sistema;
c) A construção da experiência coletiva substitui a noção de alienação no centro da análise sociológica.
Frente a estas três premissas, identifico que a participação discente no campo de minha investigação estaria bastante vinculada a estas características, isto é, implicaria pensar a categoria participação sob uma miríade de perspectivas de conduta e ação (que François Dubet chama de “registros”), produzindo, com efeito, um distanciamento entre o ator e o sistema de modo que a própria experiência social seria o centro da análise sociológica. E, desta maneira, uma superação de análises pautadas na alienação ou na subordinação dos atores participantes, pois, não significa ignorar estes condicionantes, mas percebê-los em efeitos distintos na prática experienciada de cada ator.
Por esta perspectiva, os modos de participação seriam as inscrições do ator em um determinado registro, dos múltiplos presentes neste campo, que permitem que o mesmo elabore em sua experiência social a autonomia que lhe constitua como indivíduo ou, mesmo, que lhe evidencie/permita uma inscrição pessoal nas esferas de participação instituídas na escola a qual pertence. Portanto, se a experiência inscreve o ator social em registros múltiplos e não-congruentes, remete à construção da autonomia destes indivíduos também na escola. Assim sendo, ao analisar a participação estudantil por este prisma, sobretudo quando os atores admitem o papel que exercem, implica reconhecer que esta mesma participação evoca experiências de exclusão escolar (DUBET, 2003a). Tal relação torna-se possível ao observar-se que a experiência subjetiva da exclusão escolar situa-se na incompatibilidade entre as duas grandes narrativas que atravessam os discursos modernos de escolarização, quais sejam: a afirmação da igualdade dos indivíduos e a meritocracia presente na mensuração da desigualdade de seus desempenhos. O próprio autor enfatiza que:
A heterogeneidade dos registros da ação determina a natureza de um jogo das desigualdades sem fixá-lo totalmente, e os atores são também obrigados a construir uma parte de sua igualdade, ou daquilo que eles consideram como tal, através da defesa de sua face, de sua dignidade e de sua honra (DUBET, 2003b, p.48).
Então, a participação na escola refere-se à ambigüidade entre a afirmação da autonomia destes sujeitos e possibilidade de exclusão escolar presente nestes mesmos mecanismos, remetendo, ocasionalmente, à experiência social na escola. O locus dos estudantes em processos participativos evidencia a interpenetração entre a exclusão escolar e a vivência cultural. Na próxima seção, exporei duas cenas etnográficas recolhidas de minhas inserções no campo a fim de prosseguir nesta reflexão sobre participação discente e experiência social, porém, desde um dado empírico.
3. Participação discente: duas cenas etnográficas
Cena 1
Um dos municípios gaúchos onde acompanho uma escola pública de ensino fundamental possui um projeto chamado “Governo Mirim” – uma espécie de reprodução da prefeitura local: com aluno prefeito, vice-prefeito, vereador. [...]
Anualmente, este projeto organiza um fórum local aberto à participação de estudantes da rede de ensino, tendo por assunto principal a formação de lideranças para a próxima eleição do governo mirim no início do ano seguinte. Fui convidado a assistir uma reunião de preparação para o evento. Chegando no local e horário combinado, conversei com algumas professoras enquanto aguardava o início da reunião. Como atrasou, aguardava a chegada dos alunos e alunas membros da “Prefeitura Mirim”. Pensava eu que o atraso devia-se pela ainda não presença dos alunos, como a reunião foi no centro da cidade e os estudantes viriam dos bairros. Após uns vinte minutos, fui convidado a entrar que a reunião preparatória iria começar. E os estudantes não estavam. Não era necessária a presença dos ‘organizadores’ e das ‘organizadoras’ do evento...
Cena 2
A eleição do líder de turma é uma prática comum na escola que observo. O líder de turma é um aluno representante de seus colegas nas atividades de rotina da escola que, em geral, restringe-se a participar no conselho de classe – instância de avaliação das aprendizagens em que os professores falam sobre os alunos. No dia em que estava na escola fiquei sabendo que o líder de uma turma de oitava série havia pedido transferência da escola para ir morar com a mãe e seria realizada uma nova eleição. Assim, acompanhei a diretora neste procedimento. Inicialmente, os alunos ouviram um discurso da diretora que elaborava um perfil do novo líder da turma: ser bom aluno, estudioso, bom colega, um bom exemplo a todos – o que conduzia a votar em alguns e a não votar em outros. Começaram a votar – voto aberto e oral – e, a cada voto pronunciado, percebia que as feições da diretora modificavamse, parece que os votos estavam indo à direção contrária da expectativa da dirigente. O eleito foi Jonas4, um tipo de antimodelo esperado para a função, era irônico e festivo. Os alunos votaram em quem quiseram. O voto também seria um estilo de representar ou participar na escola?
Entendo por cena qualquer fato ou imagem que prenda a atenção ou desperte qualquer reação (sentimento, analogias, por exemplo) e, particularmente, estas duas cenas foram recolhidas de minhas primeiras investidas etnográficas na escola pública estadual a fim de captar as nuances da participação discente na instituição. Optei por estes recortes ao reconhecer que apresentam elementos reflexivos sobre o tema investigado, sobretudo ao colocá-las lado a lado, revelando, pois, as incongruências de sentido nas práticas de participação escolar. Isto significa afirmar que a participação é uma prática social de sentidos e perspectivas ambivalentes entre os atores que a experimentam.
A primeira cena traz consigo as marcas da escola enquanto uma instituição formal identificada e constituída na sua estrutura – a leitura de um importante sociólogo da educação aqui elabora uma perspectiva de permite transitar de uma cena etnográfica à outra. Em 1956, Antônio Cândido publica na Separata de Educação e Ciências (Boletim do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais) o texto “A Estrutura da Escola”, o qual demarca o entendimento da escola como um grupo social e, assim sendo, permeado por diferenciadas formas de agrupamento (institucionais ou não) bem como alguns notados mecanismos de sustentação destes grupos. Há, portanto, segundo Cândido (1971), que se ter o reconhecimento de que a instituição escolar está segmentada. Seus grupos não são apenas heterogêneos, reconhecem-se heterogêneos – subgrupos. A liderança seria um dos principais mecanismos de sustentação dos referidos agrupamentos sociais, esta, quando exercida pelos professores, legitima-se em um sistema de controle baseado no prestígio e na autoridade conferidos pelo status de detentor de saber. Pois, sua liderança “é faculdade socialmente conferida de superimpor aos educandos um sistema de normas educativas e sociais preestabelecidas” (CÂNDIDO, 1971, p. 120).
Tal qualidade associa-se a uma das finalidades sociais da escola: a homogeneização. Produz subordinação, obediência, organização, (...) exclusão. Por que exclusão? A institucionalidade da escola é a contraface do reconhecimento de que o ensino está segmentado desigualmente, ou seja, aqueles que não se enquadram na “normalidade” (que por muitos é chamada de “igualdade”) são educados por sanções. Conforme o mesmo autor:
É a suspensão do insubordinado, a dispensa do relapso, a punição do atrasado, a reprovação do que não comparece. (...) É a suspensão do desatento, a reprovação do ignorante, a censura do vadio, o castigo do inaplicado (CÂNDIDO, 1971, p. 125-126).
Os escritos de Antônio Cândido atualizam-se na primeira cena etnográfica apresentada e questionam os processos de escolarização sobre suas efetivas possibilidades de democratizar-se, uma vez que, ao tornar-se escola das massas populares não se desvinculou dos padrões culturais das elites, ocasionando em processos de produção dos estigmas, dos estereótipos e das desigualdades. Neste sentido, a elaboração de Cândido antecipa toda uma discussão contemporânea sobre os processos de interação na escola, em substituição aos modelos de socialização escolares (críticos ou não), que predominaram até uma década atrás.
Portanto, este texto de Antônio Cândido permite-nos encaminhar análises e entendimentos neste contraste, um tanto impressionista, entre as duas cenas recolhidas na etnografia no seguinte aspecto: o autor não somente admite a estrutura da escola – o que outros já fizeram por uma perspectiva mais estruturalista – como sinaliza que esta estrutura é cotidianamente corrompida e desalinhada pela ação dos próprios atores. Estes atores fazem seus grupos sociais, produzem suas sociabilidades, compreendem sua participação por um sentido distinto daquele apregoado institucionalmente. Eis a contribuição de Antônio Cândido.
Se na primeira seção deste artigo pontuo a mudança sociocultural contemporânea que permite a emergência de um ator cultural que de maneira permanente retorna para si mesmo, como diz Alain Touraine, e na segunda seção articulo tal mutação cultural com os registros de experiência social de cada ator em François Dubet, agora mencionaria que este ator é capaz de desarticular a lógica da instituição por suas lógicas de ação – seria um ator que escapa aos limites e interditos da escola, em Cândido (1971). Estes mecanismos não são inócuos a valores contraditórios, não se ignora os limitadores estruturais e simbólicos da formalização escolar, ou mesmo sua abertura democrática desde 1988, mas reitero que são práticas que possuem sentidos e valores distintos para cada ator.
Ao afirmar em outro momento neste texto que o valor da participação discente não é universal entendia que há um campo de significações entre o indivíduo e a escola, o que remete a uma breve análise particular da segunda cena etnográfica exposta. Analisando o descompasso entre as expressões da gestora da escola e seu empenho em elaborar um perfil idealizado de líder de turma e, por outro lado, a eleição de um líder com um anti-perfil, não penso que tenha sido diretamente um voto de resistência à lógica institucional que os amordaça, ou mesmo um meio de depreciação dos canais de participação colocados a seu dispor na escola, mas, talvez, seria um voto de estilo diferente – pautado em outros valores e outras lógicas de ação. Por fim, concluo dizendo que participação talvez seja um estilo.
Para finalizar: da participação como estilo
Quando trato a participação como estilo não tenho a intenção de torná-la um valor liberalizado, que relativiza seu estatuto político de intervenção no cotidiano da escola, apenas desejo elucidar que estas práticas elaboram-se nas ações de cada ator e, assim sendo, não se pretendem universais ou teleológicas, mas são ações políticas sob uma lógica que articula cada experiência social e cultural. Ou seja, recuperar o sentido etimológico da expressão estilo, do latim, qual seja: “ponteiro com que os antigos escreviam nas tábuas cobertas de cera ou argila ainda fresca” (SILVEIRA BUENO, 1965, p. 1269). Pensar a participação como estilo implica verificar sua dimensão estratégica, ou seja, atualiza seu estatuto como um campo de negociações de suas formas e funções, de tal sorte que represente uma inscrição pessoal com formas e funções contingentes. Além disto, se, por um lado, a participação discente é delimitada pela institucionalidade dos canais abertos à participação, por outro, evoca uma dinâmica específica (aberta) de apropriação destes mecanismos individualmente. Para provocar novos debates e encerrar este artigo, reitero que estilos de participação seriam as inscrições do ator em um determinado registro, dos múltiplos presentes neste campo, que permitem que o mesmo elabore em sua experiência social a autonomia que lhe constitua como indivíduo ou, mesmo, que lhe evidencie/permita uma inscrição pessoal nas esferas de participação instituídas na escola a qual pertence.
2 Georg Simmel, filósofo alemão do início do século passado, desencadeou reflexões em torno das interações sociais de tal maneira detalhadas que buscava as sutilezas e nuances das relações sociais, tendo como objeto /campo a multiplicidade destas relações. Questionou-se como ser possível a sociedade, que mecanismos, processos ou estruturas lhe possibilitariam a permanência.
3 Entendo que, sociologicamente, indivíduo, sujeito e ator são conceitos distintos. Entretanto, tal distinção não se constituiu como objetivo para este estudo.
4Foram preservados os nomes reais dos informantes, portanto utilizei nomes fictícios para preserválos.
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Dados Técnicos:

Este artigo é uma versão revista de comunicação homônima apresentada no GT Sociologia da Educação, do VII Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul (Anped Sul). Itajaí, SC, junho de 2008.
SILVA, Rodrigo Manoel Dias da. ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO – PPGE/ME FURB - ISSN 1809– 0354 v. 3, nº 1, p. 72-88, jan./abr. 2008
Rodrigo Manoel Dias da Silva é Professor de Ensino Superior e Pós-Gradauação.
(Doutorando em Políticas Públicas)
Contato para cursos e palestras (e-mail): rodrigo_ddsilva@yahoo.com.br

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